A avassaladora bondade

Eduardo Vieira
4 min readJul 7, 2020

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(Eduardo Vieira — 07/jul/2020)

Amanhecia mais um dia frio naquele inverno em Birkenau. Mas aquele não seria um dia qualquer para os sete homens que jaziam em seus catres, emagrecidos até o limite mais baixo de sobrevivência. Esses homens não haviam sido bons, nem em suas vidas nem naquele período de pesadelo irreal. Já não se lembravam há quanto tempo haviam sido recolhidos de suas ricas casas e separados de parentes cuja existência haviam desprezado e cujo amor haviam ignorado. Mas parecia uma eternidade.

Entretanto, nada daquilo passava pela cabeça daquelas criaturas. Sua pouca atenção estava concentrada na pomba. Pois de alguma forma, naquele frio enregelante de janeiro, uma grande pomba branca havia pousado numa das traves do teto baixo. E um raio de sol, passando por uma fresta inexistente no telhado crú, iluminava em cheio o belo pássaro, tornando-o uma figura resplandecente de um mundo de sonhos há muitas décadas soterrado e esquecido.

E a pomba piou. Seu pio soou aos homens como uma grande badalada do sino de uma imponente catedral. A pomba parecia olhar para o interior de suas almas, desnudando suas mesquinharias. A raiva começou a crescer naqueles corações, reação automática a tudo o que pretendesse lhes mostrar suas essências. Mas ela não vingou. Como um fogo que tentasse pegar em gravetos congelados que já haviam desistido de qualquer apego à vida, o fogo da sua raiva não encontrou material humano suficiente para brotar e arder.

O Mal, que a tantos encanta com o seu bruxuleante e enganador brilho, assim como o fogo traz em si sua própria destruição. Sem mais o que consumir, aquela raiva simplesmente não pôde aparecer para dominar os homens. Estavam à mercê daquela pombinha.

Sob aquele olhar impossivelmente penetrante o banqueiro se lembrou da risada com que escarneceu do rabi quando este foi levado pelos soldados. Diante daquela cena fulgurante ele se recordou do medo gélido que espremia implacável seu coração e do alívio selvagem por ter sido poupado. Mas naqueles primeiros dias ainda tinha força para evocar o sarcasmo e a maledicência e perguntou ao rabi onde estava seu Deus naquela hora. O rabi lhe respondeu apenas que Ele estava consigo e também com ele, o cruel banqueiro. E o olhar que o rabi lhe dirigiu foi como um soco no estômago. Não havia ali a mágoa esperada, nem o medo que o corroía. Só havia amor e perdão. E ele odiou o rabi profundamente, mergulhado na escuridão de sua alma negra.

O banqueiro nunca havia permitido que aquela cena se estabelecesse como verdade em sua mente, a desmontando em pedaços e deles esquecendo. Mas a pomba estava tornando o subterfúgio impossível. Seu olhar… Curiosamente o homem mesquinho e derrotado conseguiu sustentar aqueles olhos por alguns instantes e neles não viu, surpreso, o franzir do cenho do acusador nem a ira do ofendido. Viu apenas bondade, como nunca sequer percebeu em toda a sua vida.

E naquele instante recordou-se horrorizado de todas as suas maldades, de todas as ajudas negadas, de toda a pilhéria para com os desesperados.

E aquele corpo ressecado e fraco, já inerte há dias, encontrou forças para chorar. Foi um choro baixinho e suave, com poucas e preciosas lágrimas. O banqueiro chorava por sua infância tão triste quanto cruel, chorava por sua esposa e seus filhos, chorava por só ter entendido ali, bem no fim, tudo o que sua vida deveria ter sido.

E a pomba novamente piou.

Os homens em seus catres viram a porta abrir, mais uma vez. Mas agora o terrível medo da morte não estava em seus corações. Algo havia entrado ali, algo que os encantava e surpreendia. Algo desconhecido.

O homem que entrou era diferente. Seu uniforme parecia estranho e seu capacete também. Este homem alto e forte não chamou o nome de ninguém para a passagem da qual ninguém retornava. Sua voz não tinha o tom frio e cruel dos anteriores.

Ele disse apenas duas palavras. Freedom. Freiheit.

Outros homens entraram para surpresa dos desvalidos em seus catres. Traziam cobertores e vozes suaves. Comida, água e algo tão precioso que fez os homens se curvarem, soluçando de tanta emoção. Traziam amor, os homens fardados. Humanidade e respeito. Carinho e cuidado.

Todos receberam o que podiam suportar e mais. Quando um homem fardado chegou enfim ao catre do banqueiro, viu que havia chegado tarde demais. Seus olhos fitavam um ponto vazio no telhado. Sua expressão, porém, surpreendeu o homem. Este chamou seu capelão que concordou enquanto cobria aquele rosto sofrido com uma manta. Era uma expressão muito clara.

Era o rosto de um homem feliz.

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