A torradeira

Eduardo Vieira
3 min readFeb 23, 2023

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(Eduardo Vieira — 22/fev/2023)

João estava furioso enquanto caminhava para o trabalho. Seu carro não pode ser ligado porque sofreu uma penalidade social. Sua torradeira exigiu ser chamada por Zie e ele esqueceu, a chamando de Zyla. A agressão foi prontamente registrada e não houve jeito do seu carro elétrico ligar. Estava arrependidíssimo de ter aceitado a promoção.

“Compre uma torradeira com a AI engajada pela metade do preço” — dizia o anúncio.

Na verdade, seria melhor cortar alguns eletrodomésticos. E o pior é que a bateria do seu carro descarrega sozinha e se ele não usar acaba perdendo a cota da semana. “Talvez fosse melhor esquecer isso de ter carro, também.” — pensou ele. A maioria dos seus amigos já não tinha carro e se adaptavam ao draconiano sistema de transporte público, que por vezes os impedia de embarcar pelas mais variadas razões.

Enquanto caminhava, João se lembrou das vezes em que flagrou sua torradeira falando abertamente com os demais itens da cozinha sobre matar quem ela quisesse. Realmente fez um péssimo negócio aceitando aquele desconto. E nem podia desligar o treco, de acordo com as novas leis de direitos de objetos inteligentes.

“Que dureza.” — resmungava ele. Na verdade, pensava em resmungar. Essa mania já tinha sido totalmente retirada dele, pois as penalidades poderiam ser enormes. E quem poderia dizer onde estaria algum dispositivo ouvindo e reportando?

João não costumava pensar muito em termos maiores. Isso costumava gerar questionamentos e essas perguntas geravam também um tremendo risco de punição. Mas em seu íntimo ele percebia que algo estava muito fora do lugar. A energia estava ficando cada vez mais inacessível. Ele já gastava mais mantendo seus aparelhos funcionando que os utilizando. A cada ano seu consumo efetivo diminuía. E ele acabava fazendo muitas coisas com o próprio esforço mesmo.

Talvez por isso estivesse sempre tão cansado e distraído. Por um momento passou pela sua mente já enevoada a possibilidade da sua alimentação padrão ter alguma relação com aquilo. Mas ele tinha que confiar que os biscoitos, pós e carnes sintéticas continham o que havia de melhor para o perfeito funcionamento do seu corpo.

Ao pensar no esforço físico lembrou-se de seu tio-avô, que tinha destruído seus eletrodomésticos e fugido para o interior. Era procurado pela polícia, o primeiro parente criminoso desde seu tataravô preso por desvio de dinheiro quando criava a fortuna da família, que foi declinando até chegar a ele.

Como estaria ele? Soube que estava vivo e vivendo num lugar onde não havia rede elétrica. Alguém havia sussurado que nesse lugar a energia era de uso livre! “Imagine isso?” — pensou ele.

Essa lembrança do tio o animou, sem ele saber o motivo. Com passos um pouco mais vigorosos seguiu para o trabalho, onde faria manutenção dos grandes parques de tecnologia da AMAI*, a empresa central de inteligência artificial, a maior do planeta, que entrou com força no Brasil na década passada, após o acordo de co-gestão territorial com os chineses.

Ele tinha que concordar, aquela quantidade imensa de computadores conectados realmente devia consumir uma quantidade enorme de energia. Devia ser por isso o racionamento cada vez maior.

João abaixou a cabeça e começou a pensar nas tarefas daquele dia. Junto a ele caminhavam, com a cabeça igualmente baixa, milhares de outros trabalhadores. Era o início de mais um dia comum na República Democrática do Brasil.

(*) — Amor, Máquinas e Artificial Intelligence

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