Das Ardenas para o Brasil
(Eduardo Vieira — 14/jun/2020)
Há os que pretendem ser maiores que a História, arrogando-se a sapiência necessária para decidir o que deve permanecer na memória da Humanidade e o que deve ser destruído e esquecido.
Há outros, como eu, que enxergam a história como o registro do nosso passado, repleto de erros e acertos, de gigantes e canalhas, de heroísmo e vilania. Esse registro nos proporciona inúmeras lições, algumas muito atuais, como essa que venho apresentar aqui.
Em 16 de dezembro de 1944, em pleno inverno rigoroso numa Europa devastada pela guerra, tropas americanas já sonhavam com o fim da guerra próximo. Vitoriosos no Dia D e avançando velozmente pela França e pela Bélgica, os aliados começavam a considerar o inimigo nazista vencido. Neste dia, porém, o Alto Comando Alemão (OKW — Oberkommando der Wehrmacht) resolveu frustrar todo esse otimismo.
Foi lançado um ataque que logrou completa surpresa, com quase meio milhão de tropas, mais de mil tanques, e perto de 2.500 peças de artilharia. O estrago foi tremendo e houve uma retirada apressada em diversos setores. Num desses, os soldados derrotados e feridos cruzavam com tropas marchando resolutas na direção oposta. Eram os soldados da 101a divisão aerotransportada.
Alertados para o risco de ficarem cercados os paraquedistas responderam: “Somos paraquedistas. Estamos habituados a lutar cercados”.
Estes avançaram até Bastogne e lá ficaram, sem arredar pé. Os alemães os bombardearam durante semanas, atacaram de todas as formas possíveis, sem conseguir sua rendição. Numa comunicação ao general americano então completamente isolado o general von Lüttwitz enviou uma carta solicitando gentilmente a rendição das tropas americanas. A resposta do general McAuliffe foi breve porém clara:
“Está maluco!” — no original, “Nuts”.
Os americanos resistiram até que o contra-ataque americano enxotou as forças alemãs e frustrou a tentativa de virada.
Nesse período de cerco nos conta o historiador Stephen Ambrose, famoso pelo seu trabalho em “Band of Brothers” e também “Soldado cidadão”, que muitos soldados esgotados pela tensão do combate eram enviados para a retaguarda para recuperar as forças.
Ora, essa retaguarda por vezes ficava a 100 metros da linha de frente e um par de horas de descanso muitas vezes eram suficientes para o soldado se restabelecer emocionalmente e voltar firme e resignado ao seu posto.
E essa é a lição que este extraodrinário acontecimento nos traz hoje, nesta guerra inclemente que lutamos, ainda velada, sem tiros e sem violência aberta.
Muitos de nossos soldados tem permanecido tempo demais na linha de frente. Exaustos, sem comunicação com a liderança, sob constante ataque, com todos os problemas da vida a resolver, é mais do que compreensível o desânimo, a desesperança e mesmo o desespero. A estes não tenho nenhuma palavra dura, nenhuma admoestação altiva.
Tenho apenas meu mais profundo carinho, meu apoio incondicional de irmão em armas, minha oferta de seguir defendendo a linha enquanto recuam um pouquinho para respirar. Façam isso, é vital. Sem vergonha, sem tristeza e sem receio. Somos milhões e vamos manter a linha.
Não é necessário nem inteligente que deixemos queimar talentos resplandescentes e mentes brilhantes por falta de um olhar humilde e compassivo.
Recuem, irmãos, e descansem. Em breve estarão de volta revitalizados, firmes, fortes e ferozes. E tomarão os lugares de outros que recuarão para se renovarem da mesma forma.
Não se deixem queimar, não permitam que o desespero os sobrepuje. Suas súplicas podem parecer invisíveis ao nosso Alto Comando mas vocês, cada um de vocês, é muito visível e precioso aos seus irmãos de trincheira. E somos nós, os soldados, que vencem uma guerra. E nada mais.
Estamos juntos, todos nós, esses poucos, poucos felizardos.
Esse bando de irmãos¹.
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(¹) — referência ao discurso feito por Henrique V na véspera da Batalha de Agincourt, no dia de São Crispim, na peça de William Shakespeare.