O Homem no Costado

Eduardo Vieira
5 min readJul 12, 2019

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(Eduardo Vieira)

Era uma vez um homem que caminhava pelo convés de um grande navio. Não era particularmente bom, nem mau. Achava que devia melhorar portanto estudava e pensava nisso. Tanto pensava e estudava que negligenciou o cuidado de seus sapatos que ficaram gastos e com a sola lisa. Ao passar perto da amurada do convés inferior escorregou no chão molhado e caiu.

Por sorte e um rápido reflexo conseguiu segurar num cabo que estava dependurado e ali se agarrou, batendo contra o costado do navio e pedindo socorro. Já não era jovem e não tinha força para subir por aquele cabo fino. Todo seu esforço era necessário apenas para que não despencasse para o abraço frio do mar revolto.

Pessoas ouviram seus gritos e olharam para ele. Alguns o criticaram por não ter cuidado de seus sapatos. Outros o maldisseram por ter estudado demais. “Estava muito mudado, muito estranho” — diziam.

Alguns, compadecidos, lhe atiraram um pão, que foi levado pelo vento. Num desses arremessos o homem se esticou para pegar o pão, pois tinha fome, e quase despencou dali de cima. Conseguiu se firmar mas sua mão machucada pelo deslizar do cabo sangrava e doía.

Logo ele deixou de ser interessante e as pessoas se afastaram. Sozinho, sentia frio e cansaço e seu único alento logo se tornou as risadinhas das crianças quando seus folguedos as levavam próximas à amurada. Entre as risadas sonhava reconhecer os sons de seus filhotes e se agarrava ao cabo com força.

Caiu a noite e o desespero se acercou de seu coração com sua mão gélida e repelente. Será que terminaria assim sua vida? Não haveria saída? Não teriam, talvez, sido suficientes suas boas ações na balança universal? Ou talvez tudo seria ultimamente obra do acaso e fosse santo ou bandido estaria igualmente fadado a perecer ali, pendurado no escuro.

Depois de horas de frio, fome e dor o homem ficou surpreso com a mudança que ocorria em sua percepção. O abraço do mar começava a lhe parecer mais uma benção que um horror. Seria o fim do sofrimento, afinal. Bastava relaxar um pouquinho o aperto de suas mãos e seguiria para o doce repouso, sem dor nem tristeza.

Mas uma voz sempre o acompanhava, exortando-o a resistir e a ter esperança. A mesma voz que o acompanhou, às vezes falando baixinho, às vezes ignorada mas sempre presente. Essa agora lhe sussurrava que a vida era preciosa, um dom divino, e que ele não podia desistir enquanto houvesse um fiapo de força em seus membros.

Lembrando dos gritinhos felizes e dos olhos brilhantes das crianças ele afastou os encantamentos sedutores da desistência e se aferrou ao sofrimento, enquanto seu estômago vazio doía e seus ferimentos nas mãos grudavam no cabo e se rompiam numa dor escruciante. Ele tinha que resistir.

Logo ia amanhecer e ele seria puxado de volta. E ele repetiu isso como um mantra até que o Sol finalmente começou a iluminar o horizonte. Isso levou séculos e a luz aumentava com tamanha lentidão que o homem achou que o planeta estivesse girando mais devagar e o senhor das profundezas estivesse saboreando seu sofrimento, certo da sua vitória.

O homem então pensou em suas decisões. Será que alguma o teria levado por outro caminho que não aquele? Com certeza, praticamente qualquer decisão diferente teria afetado aquele desfecho trágico de sua existência. Mas caberia a ele se arrepender? Não tinha feito tudo com o coração aberto e o Bem em mente? Deveria se arrepender? Poderia ele ter feito algo diferente mas ainda assim reto e decente?

Poderia ter feito mais?

O navio acima dele começava a fazer os barulhos de vida e agitação. Logo o perceberam ainda pendurado ali. Como não podia deixar de ser, nesses casos, acorreram tardios seus entes mais próximos. Tentou gritar mais uma vez mas sua garganta ressecada permitiu apenas a saída de um grasnido débil. Os familiares riram e se afastaram para tomar o café da manhã. Alguns destes criticaram suas escolhas bizarras, comentando que se desceu ali sozinho certamente haveria de voltar sozinho.

O homem pensou no que lhe restaria. Não conseguiria, por certo, aguentar muito mais. Já tinha sido um milagre sustentar aquela posição por tanto tempo. Mal conseguia sentir seus braços fora a dor que eles lhe causavam. Se ninguém ainda o tinha puxado não seria razoável imaginar que alguém se daria ao trabalho àquela altura. Suas chances eram na verdade nenhuma, como tinham sido desde sua queda. Talvez até tivesse sido assim desde antes de seu embarque, quem sabe?

Esse então seria o fim daquela vida divina, preciosa. Interrompida por um descuido no trato dos sapatos, por uma desconexão com o modo de pensar da maioria. Por ser diferente.

Lançando seus últimos pensamentos às criancinhas, desejou-lhes sorte, saúde, amor e apoio. Lamentou então, tremendamente, por sua ausência no futuro delas e por suas carinhas tristes e decepcionadas pelo abandono cruel e trágico. Então, pela primeira vez desde aquele acidente, o homem chorou. Chorou por desapontar quem menos merecia e quem mais iria sentir falta dos seus devaneios, das suas brincadeiras, das tolices que sugeria e das palhaçadas que fazia. Chorou pelas crianças e num último esforço tentou subir pelo cabo, o sangue escorrendo, se misturando ao sal que ardia em suas feridas.

Mas já não tinha forças e este último e vão esforço foi o fim das suas reservas mais profundas. Com um suspiro triste relaxou o aperto das mãos e se deixou cair na água salgada e fria que logo o abraçou. Descendo para as profundezas caiu em abençoada inconsciência e ali terminou sua vida.

No navio o barulho do seu mergulho chamou a atenção de alguns passageiros. Alguns comentaram: “Puxa, era sério mesmo. Se eu soubesse o teria puxado.”. Outros disseram: “Se ele ao menos não fosse tão estranho eu logo saberia que era preciso puxá-lo dali.”. Uns se queixaram dos outros: “Mas vocês não viram que era preciso puxar o homem?”. Alguns ainda reclamaram: “Boa coisa não devia ser, para deixar seus sapatos naquele estado.”

Logo se afastaram para jogar cartas e pegar sol. Na amurada só restaram duas crianças que, com lágrimas escorrendo pelas bochechas, gemiam baixinho:

“Papai.”

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