O Homem que Sorria

Eduardo Vieira
3 min readMay 16, 2023

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(Eduardo Vieira — 16/mai/2023)

Já se escreveu sobre a mulher que comeu a barata e sobre o homem que acabou virando barata. Aliás, a destruição estética da modernidade faz uma população sem qualquer lastro de beleza e harmonia aplaudir Kahlos e Britos. O grotesco é apresentado como belo porque é preciso acabar com a Verdade. Mas, temos sempre a realidade ao nosso lado. E nessa realidade, um homem corria.

Ele corria pela lateral do clube Flamengo, rumo à Lagoa, no Rio. Era uma figura estranha, sem camisa às sete da manhã no frio polar carioca de 19 graus. Corria devagar, aquecendo a máquina com algumas centenas de metros a 9 por hora. O coração se agitava, límpido como o de uma criança, bombeando firme e tranquilamente o sangue por aquele singelo templo, o corpo humano. O homem sorria de leve. Pensava em Sócrates e Platão, que deram a devida importância ao corpo e à mente, formando um poderoso conjunto que sobreviveu aos séculos. Bem, uma corridinha é um passo na direção certa. E sorria.

Atravessou a avenida, ambas as mãos, coisa sempre divertida na frente do Lagoon. O Sol parecia tímido àquela hora, se esgueirando devagar rumo ao inevitável topo do firmamento. Nos fones de ouvido, o homem escutava uma sequência de músicas animadas, que ditavam o ritmo de suas pernas, cada vez mais acelerado. O vento frio, gelado (cariocas, né?), já não o ameaçava de congelamento. A pista de corrida estava movimentada e o homem não podia conter o sorriso, que mantinha estreito com custo.

Do que sorria ele, afinal? Tendo o mundo lhe mandado toda sorte de pancadas, problemas, ataques, dores e decepções, o que dava àquele homem o direito de sorrir? Mesmo contido, o sorriso atraía alguns olhares intrigados, e uns eventuais mal-humorados. Mas ninguém via o que se passava na mente do homem. Lá dentro, feliz, ele contemplava agradecido a beleza do panorama que se abria à frente dele. Sentia o corpo agitado respondendo bem à sua vontade, e tinha ciência da maravilha que era aquilo tudo, a existência de quem tem noção do tamanho do presente que é a vida.

E antes do Caiçaras ele subiu uma ponte e desceu do outro lado, aproveitando a rampa para ganhar velocidade. Virando a curva do clube ele foi recepcionado pelo Sol, em toda sua grandeza. Seus raios imediatamente o aqueceram, como um carinhoso abraço divino. Ele, que já estava no limite da sua capacidade de auto-contenção, não resistiu e abriu um largo sorriso. Que se danem os rabugentos, ora. É preciso sorrir diante de tamanha beleza.

Silhuetas disformes passavam em sentido contrário e o homem já tinha virado um avião. Era agora um Hurricane sobrevoando rasante a arrebentação da praia de Dunquerque, balançando as asas enquanto as tropas acuadas o aplaudiam. Subiu atrás de um Heinkel que procurava seu alvo entre os navios e descarregou nele uma chuva de chumbo quente que dilacerou uma das asas do bombardeiro e destruiu um dos motores. Uma rápida olhada para trás garantiu que não tinha sido seguido na manobra e pôde contemplar os bravos soldados na praia, ainda sem saber o que ele, a um quilômetro de altitude, já enxergava. A chegada iminente da maior frota civil já reunida. Com os olhos marejados de lágrimas, o homem olhava ao redor, para mais uma vez proteger aquelas tropas. E sorria.

Barraquinhas de treinamento viravam pequenos borrões coloridos enquanto ele se deixava levar pelo entusiasmo do momento. Seus fones tocavam o tema de Código da Vinci, de Hans Zimmer, enquanto ele galopava a doze quilômetros por hora, seus passos elásticos como se estivesse prestes a decolar. Uma fotógrafa apareceu, onde antes havia uma mancha, e viu que o homem sorria. Passando pelo campo de baseball ele virou à direita, se transformando num foguete. Chegando de novo à avenida, calculou célere a janela de transferência e iniciou a queima para o escape. A manobra foi um sucesso e a nave ganhava o espaço, se aproximando plácida daquela linda luz, que o tempo todo brilha para quem tem os olhos para vê-la.

Naquela silenciosa parte da jornada, o homem sorria. Na verdade, esse tempo verbal está errado. Um dia poderá ser dito que ele sorria.

Mas hoje, o homem sorri.

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