Por que choram os mequetrefes?
(Eduardo Vieira — 31/mai/2023)
Em uma praça chamada Grécia, num local qualquer, um homem falava. Isso ocorreu há muito tempo ou há nem tanto tempo assim. Talvez nunca tenha acontecido ou talvez aconteça sempre. Mas era isso que bradava à sua audiência:
- “Por que choram, mequetrefes? Vou explicar, mesmo sabendo que a maioria irá ignorar o que digo, e menosprezar-me por dizê-lo. São muitos os motivos da sua tristeza, e continuarão a sê-lo, caso persistam no erro, o que é tão certo quanto o nascer do Sol, para a maioria dos que me escutam.”
Olhando ao redor, vendo que alguns já se erguiam para abandonar a improvisada ágora, o orador não se fez de rogado, pois não estava ali para brincadeiras.
- “Já se erguem os covardes, já se levantam os soberbos, com a mesma rapidez com que cavariam um buraco na presença do perigo. Pois a coragem não nasce na vaidade mas na sua antítese, a humildade. O humilde está sempre pronto a aprender. O soberbo chora quando é chamado pelo que é e foge da oportunidade de deixar de ser.”
Ouvindo isso muitos que se erguiam pararam e fingiram que estavam ajeitando o assento e tornaram a se sentar.
- “Choram, mequetrefes, porque falharam repetidamente. Mas primeiro, falharam no mais importante. Desprezaram a Cultura e esta é uma senhora importante demais para permitir tamanho desrespeito. Ela controla muitos vícios e estes ficam à solta quando a grande cultura é deixada de lado. Dizendo-se defensores das tradições, engoliram como peixes a isca vil do ainda mais vil metal. Ousaram preterir a herança de nosso passado por 30 moedas de ouro. A derrota era, desde então, evidente.”
Incapaz de ouvir aqueles desaforos, ergueu-se rubicundo um deputado.
- “Por que, auto-entitulado mestre, nos chama de mequetrefes? Não sabe que a um mestre cabe, antes dos alunos, a humildade? O respeito? Como se arroga o direito de a nós assim se dirigir? O que fizemos para merecer isso? Fomos eleitos, não roubamos, trabalhamos com honestidade. Merecemos mais”.
O mestre sorriu e disse:
- “Não sou ninguém, podes sair daqui quando quiseres. Jamais me chamei de mestre, vim aqui compelido pela Verdade, obrigado pela Caridade. A mim escuta quem quer e quem pode. Chamei-te de mequetrefe porque assim o mereces. Guarda tua ira pois não é digno do errado reclamar de quem aponta-lhe o erro. Fostes eleito, sim, mas esqueceste dos teus princípios tão logo abriu a porta daquele gabinete.”
- “Mentira!” Vociferou o deputado, agora lívido de raiva.
- “Acusas-me de mentir, mequetrefe? Pois é mentira que disseste em sua campanha que defenderias nossas tradições, nossa moral e nossa ética? Seria mentira dizer que destinaste verbas milionárias para vagabundos notadamente corruptos em nome da sua vaidade? Seria mentira dizer que não apoiaste nenhuma ação cultural durante quatro anos e agora, reeleito, segues disposto a agir da mesma forma mequetréfica? Seria mentira dizer que se empenhaste inutilmente redigindo projetos de lei que jamais seriam aprovados deixando de abrir portas para produtores de conteúdo que ficaram, e permanecem, à míngua?”
O deputado, embaraçado, sentou-se, voltando a ficar vermelho. Mas desta vez era um tom diferente.
- “Erraram, mequetrefes, entrando num jogo de cartas marcadas sem a firme disposição de quebrar o jogo por dentro. Ao contrário, se curvaram às regras impostas pelos mais vis dos bandidos que corroem essa bela pátria.”
O ex-presidente então se ergueu e disse:
- “Não me chame de mequetrefe, infeliz, pois não sabe o que passei. Não sabe o quanto resisti nem a quantos pecados tive a fortaleza de dizer não.”
A ele respondeu o mestre, sua voz bondosa:
- “Meu caro, não faço nenhuma idéia de suas vicissitudes. Apenas posso imaginar seus apertos e o tamanho da pressão a ti imposta. Todavia não serei eu a te julgar e sim a História em pessoa. E esta é irmã da Cultura. Tu hás de convir que maltrataste esta última com o descaso, ao passo que do cofre não te descuidaste. Muitas são tuas virtudes, e bem o sei, e muitas tuas falhas. Mas a História se lembra dos grandes feitos e não deixará de se lembrar do ponto culminante de tua derrocada, que foi a mesma de todos os patriotas. Deixaste o povo sem liderança no momento crucial, mas mantendo uma nesga de esperança que sabias ser indevida. Entregaste o povo pacificado como um cordeiro àqueles que pretendiam escravizá-lo. Eu posso perdoá-lo, por caridade e por amor. Mas a História é implacável e feroz na defesa de sua querida irmã.”
O ex-presidente tornou a sentar-se, cabisbaixo e pensativo.
Um popular se ergueu desta vez, incapaz de controlar sua revolta.
- “Ousa nos chamar de mequetrefes, patife, quando eu mesmo passei dias e noites em protesto, enfrentando chuva e frio.”
O homem respondeu:
- “Patife eu não sou, mas de antemão o perdôo por tua grosseria. Mequetrefe tu és, sim. Durante todo o tempo mesmo em que arrumavas as malas para ir ao protesto, optaste sempre pela voz mais sensacional. Como um adicto, buscaste a emoção, relegando às favas a razão. A ti encantaram os gritalhões, os burros, os vis. Eu mesmo dizia que a tua responsabilidade não poderia jamais ser delegada a outrém mas tu preferiste me desprezar. Pois quem seria este pequeno homem para pretender remover-te do teu vício?”
Revoltado, o popular gritou:
- “O que queria que eu fizesse? Que nós fizéssemos? Queria que o povo se batesse contra os fuzis?”.
Ao que o homem retrucou:
- “Não, meu querido conterrâneo. Pretendia apenas que tu aceitasse tua responsabilidade. Que tu se pusesse disposto à vitória ou ao fracasso. Mas preferiste clamar por uma instituição que se mostrou, sempre, imerecedora de tua confiança. E digo aqui, na mais pura expressão da verdade, que tu mesmo já sabias que tal confiança era, na mais delicada das acepções, arriscada. E, mequetrefe que és, tomaste a decisão de colocar tua liberdade e tua riqueza diante desse risco. E agora, por isso mesmo, choras.”
O popular, furioso, virou as costas e foi embora, xingando o homem entre seus dentes.
-”Assim é o nosso povo, meus caros.” — concluiu o homem. “O enfurece, acima de tudo, o bom senso, a parcimônia, a sugestão de sabedoria. O encanta o sensacionalismo, a frivolidade, o pueril brilho dos rapapés e das celebridades. E por isso, mequetrefe, chora.”
Ergueu sua voz e sua postura mudou, tornando-se mais dura.
- “Pois choram, todos aqui, por que são mequetrefes. E se não admitirem suas falhas, se presumirem estar acima desta crítica, seguirão afundando no lodo cada vez mais fétido, do qual não conseguirão livrar-se jamais. E nem quando tiverem a putrefação verde cobrindo seus narizes perceberão o erro. Porque assim é o mequetrefe. Vejo-os prontos a repetir todas as barbaridades de outrora. Vejo-os já esquecidos da derrota e prontos para seguir as mesmas lideranças que os levaram a esse abismo. Mas vejo algumas luzes por aí.”
E olhou diretamente em alguns olhos.
- “Vejo que o brilho da sabedoria me ilumina, de alguns belos olhares oriundo. Vejo que a justa contrição do penitente contorce rostos cheios de honestidade e humildade. Vejo a força da determinação em outros tantos semblantes. Pois saibam, meus irmãos, que todos nós podemos ter sido um dia mequetrefes. Todos podemos errar, pecar e tropeçar. Mas a todos nós está reservada a esperança da redenção. A todos nós se apresenta um caminho de humildade, de beleza, de virtude. Mas este é um caminho de dor e labor. Não é para os que caminham com os olhos no chão em busca de recompensas. É para aqueles que caminham com os olhos voltados para o Céu, em busca de Deus. A estes caberão toda sorte de dores e tristezas. Mas estes, inquebrantáveis em sua fé, haverão de vencer, ao fim e ao cabo, não importando a força que o Inimigo venha a reunir.”
Abriu os braços e, sorrindo, prosseguiu:
- “Todos nós choramos, hoje. Estamos irmanados, como sempre, na dor e no sofrimento. Pois façamos destes nossa armadura e nossa espada. Que a dor nos traga a humildade de voltar os olhos para a sabedoria, preterindo os gritalhões. Que o sofrimento tempere nossa vontade, nos permitindo a paciência para aprender e para operar. Choramos todos, porque mequetrefes somos, ao nos permitirmos uma derrota contra inimigo tão desprezível. Mas agora, chega de chorar. Chega de confusão, chega de incerteza. É chegada a hora de nos unirmos com cautela, com prudência, com amor ao que é mais importante. Chegou a hora de trazermos a Cultura como nossa principal aliada. E com ela, serva adorada de Deus, jamais perderemos outra batalha.”
Terminada esta frase, o homem se levantou, gentilmente acenou para todos, e se retirou.