Uma pedalada divina

Eduardo Vieira
6 min readOct 5, 2022

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(Eduardo Vieira — 04/out/22)

Numa pequena ilha nos fabulosos mares do Sul, um ciclista começa seu passeio. Era bem cedo para ele, dorminhoco assumido, mas houve uma vontade grande demais para ser negada e ele já tinha abandonado o ceticismo em relação a tais necessidades. Era preciso pedalar e lá estava ele, obediente e feliz. Estava se sentindo jovem como sempre. Coisa curiosa, ele sempre se sentiu jovem como uma criança, desde pequeno até aquele dia. Já não era mais jovem, pensava ele, e ria-se da própria surpresa de parte de sua mente. “Como não?” — aquele pedacinho reclamava. Houve tempo em que isso poderia entristecê-lo. Houve tempo em que foi julgado e condenado pelo número que aparecia na sua carteira de identidade. E teria ficado triste então mas já tinha aprendido que só há uma Pessoa a quem devemos agradar e definitivamente não seria ele próprio. E deu uma risada alta.

Desde que tinha se dedicado a pensar em Deus, havia mais de uma década, o ciclista tinha acumulado uma percepção toda pessoal do que seria viver com Ele. E sabia que isso incluía muitas risadas, muita alegria e acima de tudo muito amor. Quem diria, pensou, que poderia estar num passeio nesse lugar tão famoso, onde tantas histórias de aventuras foram criadas, onde piratas lutaram e onde heróis nasceram para a eternidade. Teve uma pontada de saudades de suas filhas que não vieram nessa viagem. Mas já estavam crescidas e trabalhando e cuidando bem de suas vidas, encaminhadas e completas. Ele já podia sossegar, sem dúvida. Seu trabalho estava feito.

“Uhm” — pensou ele. Então seria disso que se tratava essa urgência? Seria isso mesmo? Ele sabia que em algum momento o chamado seria feito e aquele aspecto da fantasia material seria abandonado para que então ele pudesse entrar no mundo real, aquele bem pertinho de Deus. Andava sempre curioso sobre isso e tinha explicado tudo em seu último livro, este sobre metafísica, chamado “Amor Dei”. Seria sem dúvida vendido na seção de auto-ajuda, resmungou ele. Depois pensou que devia ter incluído um capítulo sobre poupança com juros compostos para compor melhor o ambiente. E riu, mais uma vez. Ria muito, esses dias. Ria-se quando via uma criancinha correndo, ria quando via um casal de mãos dadas, ria ao ver uma árvore em flor. O mundo era uma grande e maravilhosa obra de arte, de Deus diretamente para ele. E ele ria, feliz da vida.

Um ciclista se aproximou ao seu lado. E ele parou de rir.
Era seu pai na bicicleta, jovem como quando morreu, alegre e sorridente. Seu coração quase parou. Nos olhos de seu pai ele via uma intensa alegria, só possível depois de décadas de saudades. E um amor colossal, transbordante e puro. Deixou-se voltar ao passado quando, ainda criança, deitava-se na barriga daquele jovem e se sentia invulnerável. Seu jovem pai se aproximou e perguntou, numa voz suave e firme:

“Você foi bom?”

Puxa, que pergunta! Sua mente disparou, pensando em todas as pessoas que acreditaram em suas idéias mirabolantes e não viram as recompensas pelos seus esforços. Como poderia ter sido bom? Pensou em todas as mulheres que o haviam, talvez, amado, e perguntou-se se as tratou com o carinho, o encanto e a delicadeza que mereciam. Não era possível, não mesmo. Estava, claro, em falta. Pensou em suas filhas e nas diversas vezes em que tinha se negado a brincar por cansaço e preguiça, por preferir tomar cerveja com os amigos. Como podia ser bom tendo errado tanto? Era um traste! Sua tristeza, se transpareceu, não mudou a expressão de amor de seu pai. Pelo contrário, essa parecia ter aumentado de intensidade. O amor era tamanho que ele sentia calor na bochecha. Percebeu que chorava copiosamente, por todos que havia desapontado. Haveria tempo para consertos? Parecia que não. “Minha nossa” — pensou ele em agonia — “Me perdoem, me perdoem.”, queria dizer a cada um deles. Queria dizer também o quanto os amava mas sabia que não daria tempo.

Seu pai perguntou de novo, mais suavemente:

“Você foi bom, Dudu?”

Existem gatilhos de memória muito poderosos. Ao ouvir seu nome dito daquela maneira todo o seu passado se abriu e sua vida inteira apareceu clara e cristalina, de forma totalmente impossível. Lembrou-se então de alguns alunos seus, que o procuraram em desespero e saíram de sua vida recuperados e felizes. Bem, alguma coisa boa tinha feito, mesmo tão pequena. Seu pai soltou uma gargalhada alta. Estava se divertindo, o sacana! Como responder a essa pergunta? Sua mente estava em confusão. Olhou para o mar e viu uma onda imensa se aproximando. Então seria assim. Bom, isso poderia ser divertido. Olhou para seu pai com um brilho diferente no olhar. Não tinha sido bom, não o bastante. Para ele nada seria o bastante, não tinha o poder de se perdoar. Só Deus poderia dizer que ele teria sido bom o bastante. Seu pai tocou seu ombro e apontou para cima.

E o ciclista viu, acima de si, dominando todo o céu, a presença brilhante de Deus. E começou a chorar de verdade. Então era assim? Minha nossa, iria ele mesmo passar por aquela estreita portinha? A alegria era tão grande que parecia que ia explodir. A estrada tinha se transformado em algo diferente e fazia uma grande curva para o mar. Para a enorme onda. Ele seguia pedalando. Deus estava logo ali e ele não podia nem contar para ninguém. Isso tirou mais risadas de seu pai, que apontou à frente.

Havia alguns grupos de pessoas antes de uma grande construção que de longe parecia uma arquibancada. Viu atônito sua família toda no primeiro grupo. Suas meninas acenavam sorridentes e orgulhosas. Só havia amor naqueles olhares. Deus, que benção! Que maravilha! Alguns montaram em bicicletas e começaram a segui-lo. Depois passou por um grupo pequeno de mulheres que o haviam amado, que acenavam, alegres. Naquele pequeno grupo, algumas surpresas que quase o desconcertaram. Mas estavam felizes e era o que importava. Acenou de volta, algo envergonhado, tímido como sempre.

Ali adiante um grupo grande se agitava. Ele já sabia! Sorriu para seus amigos, e pôde entender que o Amor de Deus o presenteava de forma especial com aquele momento. Eram tantos! E gente tão boa! O ciclista chorava, emocionado. Como foi abençoado. Fizeram tanto por ele e ele os pagou com ingratidão. Por que não os abraçou mais e disse-lhes o quanto eram especiais? Olhou para cima mas sentiu de Deus apenas doçura. Não estava sendo recriminado. Nos rostos de seus amigos, alegria e amizade. Definitivamente estava em dívida impagável. Isso não ia dar certo. Devia ser um engano ou um delírio. Sua Fé fraquejou. Logo ali, haveria sua Fé de fraquejar? Mas que vergonha! Olhou para cima e viu que a Fé de Deus nele não tinha fraquejado. É, pensou. E eu, trouxa master, passei a vida achando que carregava uma cruz. Mas na verdade estava nas mãos de Deus. Que trouxa! Limpando as lágrimas aproximou-se da arquibancada.

Seu pai o abraçou enquanto passavam por aquela enorme construção. Deve ter feito isso para que o ciclista não explodisse. Naqueles degraus, naquelas dezenas de degraus estavam saltando e gritando centenas, milhares de crianças. Acenavam, jogavam beijos, riam e cantavam. Eram todas as crianças que ele, o ciclista, havia atingido em sua vida. Mas não podiam ser tantas. Seu pai ria ao seu lado, de seu espanto. Ali, naquela gigantesca construção, estava o sentido mais puro de sua vida e a resposta de Deus àquela pergunta.

Abraçou seu pai de volta, incapaz de conter os soluços. Olhou agradecido para cima, para aquela torrente do mais puro Amor, da mais divertida Alegria. Voltou a olhar para aquelas crianças felizes e acenou para elas, espantado. Então era assim.

E se a passagem era assim, essa montanha mágica de beleza radiante, o que viria a seguir? Poderia haver algo ainda melhor? À sua frente uma passagem brilhante se abria na onda, como um túnel resplandecente. Abraçado ao seu pai e seguido por uma multidão de familiares e amigos, fez-se novamente essa pergunta.

“Haveria algo tão maravilhoso ainda?”

Seu pai, maroto, piscou-lhe o olho e disse, logo antes de cruzarem aquele passagem:

“Haveria sim, meu filho querido.”

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