Vai ser ainda melhor

Eduardo Vieira
6 min readMar 13, 2023

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(Eduardo Vieira — 12/mar/2023)

João vivia preocupado. Tudo em sua vida lhe soava frágil, incerto, quebradiço como a mais fina porcelana. Ele praticamente não vivia, sempre aflito com o que poderia acontecer com ele, com seu emprego, com seus filhos ou seus pais.

Em certos dias o medo o petrificava e o deixava suando frio, sem saber o que fazer para resolver um problema que de fato não existia. João se torturava por um futuro trágico tão incerto quanto seria um futuro glorioso. Racionalmente uma parte dele sabia ser tudo isso uma futilidade mas ele simplesmente não tinha a força para sair do buraco em que havia se enfiado.

Uma bela tarde João voltava para casa, preocupado com o tom de voz da despedida de seu patrão. Talvez fosse aquela a semana em que perderia o emprego. Perto de casa, tropeçou na calçada e caiu de joelhos no meio-fio. Desequilibrado, tentou se apoiar num poste mas não conseguiu e terminou estatelado na rua. Imediatamente um ônibus esmagou-lhe o crânio. Estava morto! Seus filhos ficariam sem apoio, sendo ele viúvo. Teriam que ir morar com os avós, já muito idosos e com renda baixa. Seria um terror.

Estava, então, morto. Mortinho da Silva, sem cabeça sequer, sem esperança médica. Não poderia mais pagar o aluguel e nem se exasperar com as ameaças da vizinha psicopata do andar de baixo. Mas o que isso importava, pensou ele? Se estava morto, a vizinha que fosse para o cacete. E o aluguel também. Fodam-se!

Aliás, foda-se o patrão também. Ninguém demite um cadáver. Imaginou a cena de seu corpo sem cabeça em seu cubículo, tentando atender o telefone para vender seguros. Ia rir em voz alta mas não sabia das regras dali. Teria voz? Incomodaria alguém? Aliás, teria uma cabeça ou estava que nem aquele corpo que ele observava estirado na rua, com as pernas na calçada ainda?

Morrer tinha algo de libertação, pelo visto, mas nem tanto. Esse lampejo de auto-crítica logo se desfez quando voltou a se lembrar dos filhos. Tudo muito engraçado com a vizinha e o patrão. Mas os filhos, não. Ainda queria vê-los, abraçá-los. Aquilo não estava certo.

Tinha que voltar. Tinha que voltar! Não perderia mais tanto tempo se martirizando por um bando de porcarias. Sairia com os meninos, de mãos dadas, dando-lhes um beijo a cada passo, enchendo-os de guloseimas, rindo de cada gracejo, de cada pum seguido das inevitáveis gargalhadas. E abraços! Muitos abraços, muita correria! Há quanto tempo não corria com as crianças? Há quanto tempo não soltava uma gargalhada? Um grito, que fosse?

Olhando para sua vida, nesse instante longuíssimo, João viu que havia morrido há anos. Talvez nunca tivesse vivido. Queria viver! Queria mandar flores para aquela garota bonitinha do marketing. Queria fazer quebra-cabeças com seus filhos nos domingos chuvosos. Queria visitar seus pais. Queria ligar para aqueles amigos que havia negligenciado há tanto tempo, enquanto se ocupava em adivinhar quando seria seu tropeço fatal.

Acabou que tropeçou de verdade e foi realmente fatal. Que diacho! Como sair dessa? Não estava vendo a famosa luz para ser por ela atraído que nem uma mariposa bêbada. Estava ali, ancorado no chão, vendo o seu próprio traseiro e uma poça de sangue. O que estaria acontecendo?

Nenhuma porta para abrir, nenhuma escada flamejante. Mas o corpo estava lá, que não o deixava mentir. Estava morto que nem um bacalhau. Mas, então, caceta! Se estava morto e ainda estava vivo, pensando essas besteiras de bacalhaus e traseiros, então era verdade aquela patuscada de vida após a morte!

CARACAAAAAA!!

Olhou para os lados, certo de que tinha chamado a atenção de alguma coisa indesejada. O que aconteceria? Se estava morto e havia vida após a morte, possivelmente haveria Deus. Caramba, todos aqueles seus amigos ateus estavam errados. Ele também, claro. Mas agora sabia e não tinha ido nem para cima e nem para baixo.

A realização mais completa daquilo tudo caiu no João que nem o Corcovado inteiro. Atônito com a própria burrice, ele finalmente conseguiu fazer o caminho lógico. Se estava morto e ainda vivo, havia vida após a morte. Se havia, provavelmente havia Deus. Se havia Deus, seus amigos cristãos é que estavam certos, e não os ateus. Se os cristãos estavam certos, ele deveria ir para algum lugar. Se não tinha ido é porque Deus não queria, ao menos ainda. Se Deus não queria talvez não fosse a hora dele realmente morrer. Talvez ainda houvesse esperança.

“Não, seu animal!” — pensou João, assustado até com seu próprio incontido linguajar. Intimamente gostou do atrevimento de pensar tanta besteira. Se Deus existe muda tudo! Toda esperança não só é possível mas é provável. João se viu, pela primeira vez na vida (trocadilho proposital), acreditando mesmo. A Fé tinha acertado ele que nem um tijolo. Ou um ônibus. Deus existia!

Voltou a pensar nos filhos. Talvez ele pudesse poupá-los de todo o sofrimento de perder o pai tão novinhos. Sim, pensou ele, tomando uma decisão. Deus existe, Deus é bom, e vou pedir a ele para tornar aquilo tudo um aviso do qual pudesse recuar.

E pensou: “Meu Deus, eu nunca acreditei no Senhor. Sou, portanto, o pior dos vermes, além de um extraordinário otário. Peço que me perdoe. Agora que estou morto, ou sei lá o que, exatamente, tenho toda a certeza de Sua existência e peço perdão.” Uma emoção fortíssima se apossou do pobre João. Lágrimas começaram a cair de seus olhos enquanto ele experimentava pela primeira vez o Amor de Deus e uma resposta à sua prece.

Ele começou a rir enquanto chorava, maravilhado com aquilo. Pensou como não havia aumentativo suficiente para descrever o nível de toupeirice de sua vida pregressa. “Jesus, como fui estúpido!” — pensou ele, mas divertido. Mas não sou mais, não mesmo. E fez seu pedido:

“Meu Deus, tão bondoso e tão generoso, a ponto de encher de Amor um porcaria como eu. Se for possível e se for do Seu agrado, permita que isso seja um aviso e que eu volte para meus filhos. Prometo que não desperdiçarei mais a minha vida em tolas preocupações. Prometo espalhar o Amor do Senhor e agarrar muito meus filhotes e com eles brincar, correr, cantar e rir.”

Viu-se novamente caindo na calçada. “Dia da marmota!” — pensou, num relâmpago de sarcasmo, bom humor e confusão, tudo rápido demais para ser compreendido. Bateu o joelho no chão e tentou segurar no poste, mas falhou novamente. Seria mais uma vez esmagado pelo ônibus? Sua mão começava a cair na direção do asfalto, quando uma outra mão fechou-se sobre ela. Ele foi seguro, parou de cair. Ajoelhado, viu o ônibus fatal passar zunindo, dois palmos à sua frente.

Estava vivo, de novo ou ainda. Como saber? Apoiou-se naquela mão para se erguer, e arriscou uma olhada para seu benfeitor. Mas não conseguia ver-lhe o rosto pois estava exatamente contra o Sol. Levantou-se e o rosto do benfeitor continuou curiosamente contra o Sol. A outra mão apontou para o lado. João viu que era uma igreja.

Recado claríssimo, João soltou a mão que o havia salvado, agradeceu e disse, num murmúrio animado:

- “Agora, Se Deus quiser, vou fazer tudo diferente e a vida vai ficar muito boa.”

Uma voz bem atrás dele disse, num tom alegre:

“Ah, vai ser muito melhor que isso”

João virou-se, esperando ver seu salvador mas só viu o dourado globo do Sol, brilhando belíssimo sobre seu rosto. Parou um segundo para saborear mais aquela dádiva divina. Sorriu, animado, e pensou. Igreja, agora mesmo. Depois, meus filhos terão uma grande surpresa. E pôs-se a caminhar, quase saltitando, o coração cheio de alegria. Estava vivo, sabia das coisas e ainda tinha tempo para fazer muita coisa boa!

Sim, sem dúvida, vai ser ainda melhor.

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